Nasci em quatro de junho de mil novecentos e oitenta e cinco.

Lembro de Sarney e dos fiscais da inflação quando ia ao supermercado com a minha avó.

Depois veio Collor. Lembro da Tereza, do Pedro, da Casa da Dinda e da Zelia. Depois, os caras-pintadas. Eu ajudei meu tio a pendurar panos pretos na janela. Impeachment!

Veio Itamar, com sua mineirice e seu topete. Com ele, surgiu FHC, o Plano Real, dona Ruth e Marco Maciel. Aqueles tempos pareciam normais para um jovem adolescente.

Em 2002, ascendeu Lula. A figura rebelde havia sido deixada de lado. A dobradinha Malan e Palocci materializava a ideia de um país social-democrata. Eu, jovem adulto com visão crítica do mundo, vibrava ao ver a história se consolidando diante dos meus olhos.

Então conheci o governo de coalizão — e as coisas nefastas que a ele estavam ligadas. Eu iniciava minha carreira na comunicação e começava a perceber essas tensões: Mensalão, CPI dos Correios, Roberto Jefferson, Zé Dirceu e afins. Joaquim Barbosa virou o Batman. Mesmo assim, Lula seguiu e tornou possível a eleição da primeira mulher presidente da República.

A ex-perseguida política, guerrilheira anti-militares, chegava ao poder: Dilma Rousseff. Sua inexorável intratabilidade e inesperada maleabilidade pareciam um bom negócio… até a página dois. Eu seguia em ascensão na carreira, e minha vida colidia com a da presidente nos famigerados “plantões Dilma” em Porto Alegre.

Na reeleição, o neto de Tancredo deu piti, mandou recontar tudo e a conta não fechou por 20 centavos. O Brasil foi às ruas. Pedras voaram — até contra mim. O governo ruiu como pilha de farinha. Impeachment. Enquanto isso, tentavam limpar a bagunça com a Lava Jato. A onda de juízes flertando com a fama crescia. O Judiciário mordia a maçã inteira da mídia. Pela primeira vez na história, um ex-presidente da República era preso.

Emerge a figura que sempre foi o dealer. Com feição transilvânica e gosto suspeito pela mesóclise, Michel Temer assumiu a mesa. O Brasil se interessou pela “bela, recatada e do lar”, dona Marcela. Você pensou, eu pensei, todo mundo pensou. O presidente lidava com bovinos, mas aparentemente o negócio dele eram dólares. Joesley Batista e o vegano Roberto Carlos fazendo propaganda da Friboi. Alguém abriu a porteira e sobrou feno.

Um ex-milico, afeito a golpes e garantias militares, chegou ao poder no colo de uma nação iludida. Pareciam cenas de V de Vingança, de James McTeigue. Jair Bolsonaro deu voz a milhões de oprimidos. Não, não eram pessoas — eram sentimentos escondidos dentro de um povo que fingia há décadas. Sua inabilidade, sic, castrense, revelou-se ainda mais evidente ao lidar com a maior crise do mundo moderno.

A pandemia poderia ter sido o maior capital político de um político de baixa patente. Getúlio diria que o cavalo passou encilhado e de cola baixa na frente de Bolsonaro. Mas ele não era da cavalaria: era da artilharia. Cada entrevista era um tiro de morteiro. E o estrago parecia uma bateria antiaérea invertida. O Messias revelou-se mais obtuso do que eu lembrava, num encontro jornalístico.

Enquanto isso, outro presidente era preso. Temer entrava, Lula saía. O Brasil se dividia. E o grande Grenal eleitoral se consolidava.

Desde as eleições indiretas de 1985 não se via tanta tensão. Lula venceu e voltou, mais uma vez, à rampa. Aqueles que sentiam falta de Geisel e Figueiredo invadiram Brasília. O domingo quase foi sangrento. O livro do Dr. Ulisses quase foi rasgado. A política aqui é dotada de um neoconstitucionalismo à brasileira, recheada de pós-verdades de espantar Bauman. Não há clareza sobre o que é gesto democrático ou ditatorial. Razão e propósito são deixados de lado.

Abrimos a janela e mais um presidente foi preso. Collor ganhou uma cela de frente para o mar. O mundo aprendeu a ver a elegância de um penteado careca: surge o Xandão, para a liga dos juízes famosos. “Vou te prender, vou te soltar” virou uma brincadeira de programa dominical de qualidade duvidosa.

A família Bolsonaro sequestrou a estabilidade do país em benefício próprio. O chefe do clã ganhou uma tornozeleira e uma cela de frente para o Paranoá, em caráter preventivo. E chegamos a oito presidentes da República — metade deles presos de alguma forma — na história não tão longa da Constituição cidadã.

Hoje começa o julgamento definitivo de Jair Bolsonaro. Não foram precisas quatro décadas inteiras para que os receios do grupo que forçou Sarney a assumir, enquanto Tancredo agonizava, voltassem à tona. Muito em temor de que Maluf o fizesse lá em 1985. Quarenta anos depois, existem dispositivos suficientes para conter golpes de Estado.

Agora, o Brasil assistirá em tempo real a mais um julgamento hipermidiático. Eu, não tão jovem, mas ainda com visão crítica, deixei o jornalismo. Ainda assim, não deixei o interesse pelos fatos de lado. Aquele helicóptero que caiu em 1992 em Angra levou embora um sonhador — mas não o sonho de ver um país pleno, estável e democrático.

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