A porta se fecha e o som do corredor desaparece, como se alguém tivesse abaixado o volume da cidade.

Dentro do gabinete do Procurador-Geral do Estado, o silêncio tem outro peso. Não é ausência de ruído: é presença de responsabilidade. Há ambientes que não precisam anunciar que são importantes — basta olhar em volta. A sala de Marcelo Mendes é um desses lugares onde as decisões não esperam holofotes, mas movem engrenagens inteiras da administração pública.

É ali que começa a nossa conversa.

Ele nos recebe com a tranquilidade de quem conhece profundamente o território em que atua. Não se trata de vaidade. É domínio técnico mesmo, amadurecido por anos de serviço público, de leitura incessante e de uma convivência quase diária com a Constituição. O procurador fala cadenciado, mas firme, como alguém acostumado a mediar tensões silenciosas entre o que o Estado deseja e o que a lei permite.

Eu brinco que “tudo passa pela PGE”, e ele, sem qualquer afetação, confirma. Não como um slogan, mas como uma constatação quase óbvia: leis, programas, obras, políticas, incentivos, pareceres, contenciosos – qualquer movimento do Estado precisa antes atravessar a mesa desses 129 procuradores que defendem Santa Catarina em juízo e evitam que ela escorregue em ilegalidades. A PGE é, de alguma forma, a consciência jurídica do governo.

E é uma consciência sobrecarregada. Cada procurador tem, em média, doze mil processos ativos. Doze mil. Um número que nenhuma vírgula consegue suavizar. É o dobro do segundo estado mais sobrecarregado do país. A matemática é implacável, mas eles seguem dando conta — com sacrifício institucional e um talento que não costuma ser exibido.

Marcelo não enfeita o diagnóstico: o modelo tradicional não funciona mais. “É falido”, ele diz, sem enfrentar a palavra. Não há equipe que se expanda no ritmo infernal da judicialização. E aí aparece o ponto que, para muitos, ainda é tabu no serviço público: a chegada da inteligência artificial. Para a PGE, não é futuro. É salvação. Ele estima que, até meados do ano que vem, o sistema de IA já esteja incorporado à rotina processual. Não será substituição de cérebros — será multiplicação de braços.

A IA, nesse contexto, entra como ferramenta de redução de danos: organiza o caos, automatiza tarefas repetitivas, identifica padrões, libera o procurador para aquilo que só um humano pode fazer — interpretar, decidir, assumir responsabilidade. “Desumanizar não é uma opção”, ele me diz. E eu entendo a linha tênue: fazer mais com mais inteligência, não com menos humanidade.

A conversa avança para um dos terrenos mais sensíveis da máquina pública: os litígios ambientais. Santa Catarina vive, de modo quase cíclico, embates entre preservação e desenvolvimento. Marcelo volta ao caso da restinga julgado no STJ – um processo com potencial de congelar praticamente todo o litoral brasileiro. O Ministério Público defendia que toda restinga deveria ser considerada área de preservação permanente, sem distinção. A tese, se aceita, inviabilizaria qualquer projeto de urbanização ou infraestrutura. A PGE conseguiu reverter. “Foi decisivo”, admite, sem exagero. Há momentos em que o silêncio técnico salva cidades inteiras.

É curioso como a PGE funciona como uma espécie de bússola moral-institucional para o Executivo. Marcelo participa de tudo: da arquitetura jurídica do Universidade Gratuita à nova política hospitalar, passando por segurança pública, Estrada Boa Rural e tantos outros programas. Está sempre ali, muitas vezes no bastidor, ajustando, advertindo, evitando que a política tropece onde a lei não perdoaria.

“É como aquele amigo que diz: por aqui não”, observo. Ele ri. “É exatamente isso.”

O papo vira, inevitavelmente, para o futuro. Ele sonha com uma PGE modernizada, com melhor estrutura física, mais procuradores, softwares atualizados, IA resolvendo o que a mão humana não tem tempo para resolver. Não há grandiloquência nas metas — há necessidade. A casa precisa acompanhar o tamanho do Estado que defende.

Chegamos ao momento mais leve. Pergunto sobre hobbies. Ele corre, treina, joga golfe. Na cozinha, é auxiliar. No futebol, torcedor de um “time grande”: o Figueirense. Fala disso como quem fala de velhos amigos — com carinho, sem firulas.

Mas a entrevista ainda reserva uma surpresa. Pergunto qual seria a mudança estrutural que faria no país com uma única canetada. Ele não hesita: acabaria com o mecanismo de inelegibilidade tal como é hoje. Cita Bolsonaro e militares presos como sintomas de um sistema que, em sua leitura, se afastou do ideal democrático. E completa: gostaria de ver Jorginho Melo presidente. Não por cercania, mas por acreditar que a energia do governador – sua cobrança incansável, seu pragmatismo quase industrial – faria diferença num país atolado em lentidão.

Quando tocamos no episódio do “passaporte catarinense”, ele desmonta a polêmica com a naturalidade de quem estava ali, na origem do acontecimento: era sátira. Não virou política pública e nunca viraria. Mas havia, na brincadeira, um incômodo legítimo: Santa Catarina tem recebido fluxo migratório intenso, e grande parte vem de estados onde a segurança pública fracassou. “O problema não está aqui, está lá”, ele diz. O raciocínio é duro, mas é honesto.

A entrevista termina com a informalidade típica do pós-gravação. Ele me chama de careca com naturalidade — e eu rio, porque esse apelido sempre fez parte do meu cotidiano nas redações e nos corredores políticos. É engraçado como algumas alcunhas viram identidade mais sólida que o próprio nome.

Saio do gabinete com a sensação de ter visitado não apenas um procurador-geral, mas o centro silencioso de gravidade do Estado. A PGE não aparece. Não disputa manchete. Não declara guerra. Mas é ali, naquela sala onde o mundo externo parece ficar em suspensão, que Santa Catarina se explica — e se protege.

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