Ouso dizer que morri, embora ainda caminhe.
Não é a morte do corpo, essa todos reconhecem. É uma morte mais silenciosa, quase invisível, que me persegue nas esquinas do pensamento e nos vazios da memória dos outros. Caminho, respiro, falo, mas dentro de mim há o eco de um cemitério abandonado.
Ousadia tem o preço das quedas. Mas nunca errei para ferir deliberadamente alguém. Meus passos tortos sempre buscaram atalhos para um bem maior, ainda que mal compreendido. A verdade, porém, é cruel: as lembranças dos meus acertos se dissolveram. As pessoas se lembram apenas do tropeço. E eu, que um dia fui presença, agora sou esquecimento.
Não pertenço a nenhuma memória afetiva. Ninguém me reivindica no coração. Sinto-me pária, estrangeiro no território dos vínculos. E nesse exílio invisível, agarro-me a projetos frágeis, ideais improváveis, como quem segura uma vela acesa em meio a um vendaval. Aquele que ontem era indispensável, hoje é detestável.
O paradoxo é esse: morto, mas vivo. Vivo o bastante para sofrer, morto o suficiente para não ser lembrado. Vivo o bastante para insistir em buscar sentido, morto o suficiente para que esse sentido nunca seja claro.
Mas talvez, e aqui falo mais comigo do que com o mundo, seja justamente desse lugar de sombras que algo novo pode nascer. Talvez esse vazio, essa condição de pária, seja o útero silencioso de um renascimento. Talvez, quando nada mais resta, reste finalmente a chance de recomeçar. Ou acabar de vez.
