A ex-ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) e primeira mulher a presidir a Corte, Ellen Gracie
Northfleet, fez uma retrospectiva detalhada da trajetória de modernização do Poder Judiciário brasileiro, em especial após a Emenda Constitucional 45/2004, que instituiu o regime de precedentes, a repercussão geral e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Sua fala, de caráter histórico e reflexivo, foi um dos pontos altos do 19º Encontro do Poder Judiciário, evento que reúne ministros, magistrados e autoridades para discutir o futuro da Justiça no Brasil.

Ao dividir a mesa com o professor Oscar Vilhena Vieira, Ellen recordou o período em que esteve à frente do Supremo e dos grandes desafios enfrentados para transformar uma Corte sobrecarregada e burocrática em um tribunal mais racional, digital e transparente.

“Não nos basta sermos excelentes juristas”, afirmou. “É preciso administrar o fluxo de processos. Num país de altíssima litigiosidade como o Brasil, administrar é tão essencial quanto julgar.”

A interiorização e os primeiros passos de uma nova Justiça

Ellen Gracie iniciou sua fala relembrando a expansão da Justiça Federal de primeira instância no início dos anos 2000, especialmente em Santa Catarina, resultado de um esforço conjunto com o então vice-presidente do TRF4, Teori Zavascki, e o corregedor Manuel Lauro Volkmer de Castilho.

A meta era clara: nenhum cidadão deveria estar a mais de 200 quilômetros de uma vara federal. “Essa foi a primeira grande alegria que tive: levar a Justiça para mais perto das pessoas”, recordou.

A Emenda 45 e o nascimento de uma nova era

Ao revisitar o marco da Emenda Constitucional 45, a ex-ministra definiu o texto de 2004 como o “divisor de águas” da história judicial brasileira.

Foi ali que nasceram as ferramentas que hoje estruturam o sistema de precedentes e racionalizam o trâmite processual no país.

“A criação da repercussão geral e, depois, dos recursos repetitivos no STJ, representou um avanço civilizatório. Introduzimos a racionalidade que faltava ao sistema”, explicou.

Antes disso, relatou Ellen, o Supremo vivia um cenário de caos processual: milhares de recursos com a mesma tese jurídica eram apresentados continuamente, gerando decisões contraditórias e insegurança jurídica.

Do caos à racionalidade: quando o Supremo descobriu a gestão

Ellen Gracie contou que seu interesse pela administração judiciária nasceu ainda no início da carreira, logo após a Constituição de 1988, quando ingressou na magistratura federal.

“Eu via colegas dedicados, estudiosos, e não conseguia entender por que o sistema não funcionava”, lembrou.

Foi com esse incômodo que decidiu estudar o tema nos Estados Unidos, entre 1991 e 1992, durante uma bolsa de estudos. Em Washington, analisou o funcionamento de cortes federais e estaduais, incluindo a Suprema Corte norte-americana.

“Não deixei pedra sobre pedra. Visitei tribunais, estudei suas rotinas e percebi que o que faltava ao Brasil não era saber jurídico, mas gestão judicial”, afirmou. “Os americanos haviam transformado a administração em ciência. Trouxe isso comigo.”

A digitalização como ruptura

Com a chegada da era digital, Ellen conduziu uma das maiores revoluções tecnológicas do Judiciário brasileiro: a implantação do processo eletrônico no Supremo Tribunal Federal.

A Resolução 344/2007 regulamentou o uso do meio digital para tramitação de ações e comunicação de atos processuais.

“Em junho daquele ano distribuímos os primeiros 22 recursos extraordinários eletrônicos. Um deles foi julgado em menos de 24 horas. O Supremo foi o primeiro tribunal do país a cumprir integralmente a lei do processo eletrônico”, destacou.

A adoção da certificação digital para ministros e advogados, a criação do Diário da Justiça Eletrônico e o peticionamento digital transformaram a rotina da Corte.

Mesmo enfrentando resistências, Ellen recorda um episódio curioso: “Um colega, que se recusava a usar o sistema, recebeu dois mil processos de uma vez. Naquele dia, ele pediu sua certificação digital e se tornou o maior defensor da tecnologia.”

Os julgamentos em bloco e o embrião do plenário virtual

Outro avanço importante foi a criação dos julgamentos em bloco – ou “em lista” – que permitiram ao STF decidir milhares de processos idênticos simultaneamente, reduzindo o acúmulo de feitos repetitivos.

Em uma única sessão, o tribunal apreciou quase cinco mil recursos previdenciários sobre pensão por morte.

“Preferi o julgamento plenário porque a decisão monocrática cria mais recursos internos. O plenário garante eficiência e legitimidade”, explicou.

Essa racionalização levou à criação do plenário virtual, inicialmente usado apenas para decidir sobre a repercussão geral. “Foi o primeiro passo para o que viria a ser uma ferramenta essencial, embora hoje, confesso, vejo com preocupação sua ampliação excessiva.”

Ellen criticou o uso do plenário virtual para julgamentos de ações penais ou de inconstitucionalidade, alertando para o risco de violação das prerrogativas da advocacia e do devido processo legal.

“Sustentações orais por vídeo que não se sabe se serão assistidas me parecem aberrantes ao devido processo”, advertiu.

A tabela nacional de assuntos e a linguagem unificada

Outro marco de sua gestão foi a criação, em parceria com o CNJ, da Tabela Nacional de Assuntos, um sistema de padronização temática que permitiu mapear com precisão as matérias jurídicas em tramitação no país.

“Enquanto não falávamos a mesma língua, não sabíamos quantos processos havia sobre um mesmo tema. Padronizar foi essencial para transformar o Judiciário em um verdadeiro sistema.”

Do Mensalão ao processo digital: um caso paradigmático

Ellen Gracie também revisitou o início do julgamento do “mensalão” (Ação Penal 470), quando presidia o STF.

A Corte precisou adaptar-se a um caso inédito em complexidade e volume de provas: foram 88 mil páginas digitalizadas, permitindo acesso simultâneo a todos os advogados e ministros.

“Foi uma operação inédita no Brasil. Conseguimos ouvir mais de 600 testemunhas em dois anos. O processo digital mostrou sua força e eficiência”, recordou.

“A presidência é apenas a voz do colegiado”

A ex-ministra fez questão de ressaltar o valor da deliberação colegiada, tanto no aspecto jurisdicional quanto no administrativo.

“A presidência é apenas a porta-voz daquilo que decide o plenário”, afirmou, ecoando uma concepção democrática de gestão institucional.

O legado: modernização, racionalidade e coragem

Ao concluir sua fala, Ellen Gracie reconheceu que muitos dos avanços tecnológicos e administrativos de hoje nasceram de resistências e desafios da época.

Mas reafirmou que o espírito reformista do Judiciário precisa ser constante, não um episódio, mas uma cultura.

“Precisamos olhar para os problemas sem receio e enfrentá-los com coragem. A reforma judicial não é um ato, é um processo contínuo”, disse.

E, em tom emocionado, completou: “Fizemos o que era necessário para que o Supremo desse o exemplo. Administrar é também servir à Justiça. O futuro da magistratura depende da coragem de inovar.”

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