O Ministério Público costuma ser visto como uma engrenagem antiga, sólida, acostumada ao próprio eco. Porém, basta atravessar a porta do gabinete da Procuradora-Geral de Justiça, Dra. Vanessa Cavalazzi, para perceber que algo ali se move em outra frequência. Não é ruptura brusca. É maturidade. É presença. É mudança que entra pela forma como ela ocupa o espaço.

A Procuradora-Geral fala com precisão serena. Nada em sua postura lembra o peso performático que tantas vezes acompanhou cargos de alta liderança. Ela é a primeira mulher a comandar o Ministério Público de Santa Catarina em quase quarenta anos — número que, por si só, revela mais sobre o país do que sobre ela.

“Eu não imaginava que seria tão significativo”, diz.

A frase, longe de falsa modéstia, é constatação. Servidores comentam que querem levar as filhas para conhecer o gabinete. As meninas passam pelos corredores com outros olhos. A instituição, ao se deparar com a Procuradora-Geral, passa a se ver com lentes novas. E isso, no serviço público brasileiro, já é mais do que símbolo: é ruptura cultural.

Durante sua campanha, sugeriram que cortasse o cabelo, que adotasse roupas escuras, que afinasse o tom para se encaixar no modelo masculino de autoridade.

Ela sorri ao lembrar — e responde com simplicidade:

“Não preciso parecer masculina para parecer competente.”

É nesse gesto que se revela a força de sua liderança: a convicção de que diversidade não é pauta; é método. Instituições que enxergam apenas com uma lente jamais verão o quadro inteiro.

Quando a conversa migra para o feminicídio, a firmeza da Procuradora-Geral de Justiça se intensifica. Ela menciona um dado que deveria ser repetido como mantra:

Quase 90% das mulheres assassinadas em Santa Catarina nunca registraram um boletim de ocorrência. O impacto do número não está na estatística. Está na pergunta que ele impõe ao sistema — e que a Procuradora-Geral não evita:

“Há algo errado no modo como acolhemos. Elas não nos procuram.”

Dessa inquietação nasce o Mapa do Feminicídio, uma das iniciativas mais importantes do Ministério Público catarinense nesta década. O objetivo é compreender o fenômeno com profundidade territorial: quem são essas mulheres, quem são os homens que as matam, onde moram, que escolaridade têm, quais vulnerabilidades as cercam.

Uma agricultora do Oeste não vive os mesmos riscos que uma jovem da Ilha. Uma mulher do litoral enfrenta realidades diferentes das mulheres das regiões agroindustriais. Políticas públicas só funcionam quando reconhecem essas diferenças.

Além disso, o MP trabalha para ampliar de 11 para 32 núcleos de atendimento a vítimas — espaços interdisciplinares que reúnem assistência social, saúde, orientação jurídica e apoio institucional num só lugar. O objetivo é simples e grandioso: que a mulher encontre acolhimento sem peregrinar entre repartições.

A tecnologia surge como outro pilar central da gestão. A Procuradora-Geral de Justiça não faz rodeios:

“Não existe possibilidade de exercer nossas funções sem inovação.”

Para isso, o Ministério Público criou o Escritório de Ciência de Dados Criminais, que lê o Estado com lentes que ultrapassam a lógica das comarcas. O crime organizado, lembra ela, não respeita fronteiras administrativas. O MP também não pode respeitá-las cegamente.

Nesse contexto, surgem ferramentas de inteligência artificial — como o Jarvis, que resume processos, degravara depoimentos e organiza informações volumosas.

Mas a Procuradora-Geral faz questão de fixar uma fronteira ética:

“A IA cuida do repetitivo; o promotor cuida da essência.”

Ela não teme o futuro. Teme apenas que o futuro seja usado sem discernimento. Por isso fala da nova geração com cuidado: jovens que crescerão com automação, mas que precisam ser preparados para formular perguntas — e não apenas para aceitar respostas prontas.

As estruturas institucionais também estão na mesa. A Procuradora-Geral de Justiça defende a necessidade de repensar a lógica da comarca, regionalizar atribuições, modernizar a atuação e abandonar a ideia de que justiça é sinônimo de judicialização.

“Justiça não é apenas processo. Justiça é resolução.”

E, nesse sentido, cita São Joaquim, onde identificou que o aumento da criminalidade durante a colheita da maçã não era questão policial, mas social — envolvendo migração, pobreza, isolamento e vulnerabilidade de comunidades inteiras.

A solução não era aumentar efetivo policial. Era aumentar escuta. É essa visão que a Procuradora-Geral quer disseminar: não atacar sintomas — mas causas.

O bloco final revela a humanidade por trás da função: o livro marcante da adolescência, o prazer de cozinhar para a família, a habilidade culinária “esforçada”, como ela brinca. E, por fim, a pergunta clássica:

Se pudesse mudar alguma coisa no país com uma assinatura, o que mudaria?

O olhar não vacila:

“Erradicar o feminicídio.”

A resposta é direta, dolorosa, necessária. É também coerente com a marca de sua gestão. Quando questionada sobre legado, a Procuradora-Geral de Justiça usa uma imagem que permanece:

“Quero plantar a semente. Talvez eu não veja a árvore. Mas quero deixar o terreno fértil para quem virá depois.”

É impossível não lembrar da máxima de que quem planta o pinheiro não vê a sombra. Ela sorri quando menciono. A metáfora a agrada — talvez porque resuma o espírito de sua gestão.

Ao sair do gabinete, fica claro que a transformação do Ministério Público não reside apenas nas ferramentas tecnológicas ou nos projetos estruturais, mas na mudança de sensibilidade que acompanha a Procuradora-Geral. Ela não alterou o ritmo da instituição pela imposição da voz, mas pela maneira como escuta.

Dra. Vanessa Cavalazzi conduz o Ministério Público como quem sabe que o futuro não é uma ruptura, mas uma travessia. E que instituições só envelhecem quando param de olhar para fora. Santa Catarina, ao que tudo indica, está olhando de volta.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *