Chegar ao gabinete de Mari Eleda Migliorini, no topo do prédio do TRT-12, é como ser convidado para entrar no pequeno mundo particular de alguém que nunca deixou de ser artista — mesmo vestindo toga. O espaço é estreito, aconchegante, nada daquela imponência fria de salas que querem dizer “aqui está o poder”. Não. Aqui é outra vibração: madeira quente, prateleiras lotadas e uma dezena de bailarinas de porcelana que, se você olhar por tempo demais, parecem contar segredos.

E contam. Ali está o passado que ela nunca escondeu: a bailarina clássica que dividia os dias entre pliés e códigos, que dançava até tarde e corria para a faculdade no dia seguinte. O Direito venceu a disputa, mas o balé ficou no sangue — e no gabinete.

Ela recebe com uma mistura rara: a firmeza de quem escreve decisões que mudam vidas e a vulnerabilidade de quem não está exatamente confortável com câmeras ligadas. Mas topa. Respira. E encara mais uma edição do Café com o Careca.

“Três, dois, um…” — e a torre ganha voz

A temporada do Café está percorrendo o sistema de Justiça catarinense como quem abre uma caixa-preta institucional. E Mari Eleda era uma parada obrigatória. A fama dela já corre antes do crachá: escrita afiada, disciplina de bailarina, rigor de magistrada e uma pitada de progressismo que dá disposição para empurrar estruturas.

Ela sorri com aquele ar de “não exagera”, mas sabe que a reputação existe. E sabe por quê.

A juíza que não tem medo da máquina

Quando o assunto é inteligência artificial, ela não se encolhe.

“Eu acho fantástico. Vai engrandecer a magistratura e, em pouco tempo, será imprescindível.”

Não é deslumbramento. É cálculo. É experiência. É memória de quem viu a vida sair do papel carbono e entrar em um laptop que o marido trouxe de uma feira de informática de Las Vegas em 1989 — quando pensar em computador pessoal era papo de ficção.

Ela conta essa história com humor:

“Eu devo ter sido a primeira em Santa Catarina com um laptop. Os juízes iam na minha casa pedir para eu fazer as decisões deles.”

Santa Catarina sempre foi vanguarda silenciosa. A primeira audiência com computador foi em Lages. O sistema que aposentou o fax veio logo depois. O Provi. A primeira vara virtual. O hackathon que ela lançou em 2019. O LabInova que virou finalista nacional.

Não é discurso. É estrada. Mas o ponto alto da conversa vem quando ela descreve o futuro próximo: cada juiz terá um “aprendiz”.

Uma IA treinada não no Brasil inteiro, não em decisões genéricas, não em um banco de dados impessoal.

Treinada somente em sua própria base de decisões. Ou seja: o juiz ensina. A máquina aprende. E juntos produzem. Não é para substituir ninguém. É para impedir que o esquecimento — natural e humano — distorça uma linha de raciocínio construída ao longo dos anos.

“Máquina não faz concurso. Juiz faz”, ela repete como mantra.

E faz sentido. A IA pode propor. Mas quem assina é ela. Quem responde é ela. Quem decide é ela.

A pergunta geracional

Eu coloco na mesa uma inquietação muito nossa: nós, que fomos criados na Barça, sabemos quando a IA diz bobagem. A próxima geração saberá?

Ela responde com calma de quem já ponderou isso a fundo:

“O humano continua indispensável. A IA aprende com quem a ensina.”

Pronto. A síntese perfeita.

Na reta final, abro o quadro mais leve. Ela revela a paixão quase secreta: literatura francesa centrada na monarquia. Castelos, cartas, cortes, rainhas e amantes de reis. A França que vive nos livros e nas margens do Sena, onde ela garimpa edições raras como quem procura joias perdidas.

Fala do professor que um dia decretou: “Ou vai ser bailarina, ou vai ser advogada.” Ela escolheu o Direito. Mas você olha ao redor do gabinete e sabe que ele só acertou pela metade.

Na cozinha, ela ri:

“Eu sou plateia. Gosto da mesa posta, mas fogão, não.” E, se pudesse mudar o país com uma assinatura?

A desembargadora não responde com técnica, doutrina ou juridiquês.

Ela diz:

“Que todos fossem obrigados a amar uns aos outros.”

É inocente?

É impossível?

É bonito?

Sim, para as três perguntas.

Mas é também coerente com alguém que, mesmo no topo de um tribunal, ainda acredita que pessoas podem ser melhores do que o processo que carregam.

O Café termina, a torre volta ao silêncio, e as bailarinas, imóveis, parecem observar. O gabinete fecha a porta, mas a sensação permanece: há juízes que escrevem; juízes que inovam; juízes que resistem; e juízes que carregam delicadeza escondida nas estantes.

Mari Eleda parece ser os quatro ao mesmo tempo.

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