Na noite de 20 de outubro de 2025, algo quase improvável aconteceu.
Sem escândalos, sem tragédias, sem viralizações, o SP2, telejornal local da Globo em São Paulo, tornou-se o programa mais assistido da televisão brasileira. Enquanto o Jornal Nacional de William Bonner marcava 23,4 pontos e a novela Três Graças estreava com 23,8, o noticiário comandado por José Roberto Burnier atingia pico de 25,2.
Foi um pequeno abalo sísmico no sistema midiático: um telejornal de meia hora, restrito à capital paulista, superava os ícones da dramaturgia e do noticiário nacional. Nenhum evento extraordinário o explicava. Talvez o extraordinário fosse justamente isso, a volta do ordinário, do factual, do simples.
O SP2 é um produto de escassez. Tem pouco tempo, poucos efeitos e um apresentador que prefere a sobriedade à empatia performática. Mas é nesse formato contido que o programa encontra força. Quando Burnier conduz o noticiário, a ênfase recai sobre o que aconteceu, não sobre o que ele pensa a respeito. Há ritmo, mas não aceleração; há presença, mas não estrelato.
E, de alguma maneira, o público parece estar reaprendendo a gostar do silêncio informativo: aquele instante em que o fato fala por si. Essa preferência do público talvez revele mais do que uma mudança de gosto. Pode indicar uma reação sensorial a um tipo de televisão saturada de comentários, emoções e “interatividades”.
Como observa Watson Odilon Pereira de Faria (2016), ao reinterpretar McLuhan e Meyrowitz, cada inovação tecnológica reorganiza o corpo e a percepção do espectador. Quanto mais interativo o meio, mais fragmentada se torna a experiência.
A televisão digital, com suas janelas múltiplas, QR Codes e convites à participação, transformou o espectador em um sujeito disperso, alguém que toca o controle remoto como se navegasse, não como quem contempla. Num ambiente assim, o factual adquire um valor quase espiritual: oferece foco.
McLuhan diria que a TV fria da era analógic, aquela que exigia pouca participação, mas entregava alta nitidez informativa, foi sucedida por uma televisão quente demais, carregada de estímulos. O público, agora superexposto à temperatura emocional das telas, procura refúgio em ambientes mais sóbrios, de baixa entropia narrativa. É o caso do SP2, que devolve ao espectador uma forma de atenção quase tátil: o prazer de ouvir algo que simplesmente aconteceu.
O pesquisador Alexandre Schirmer Kieling (2009) descreve esse processo como parte da midiosfera, o território híbrido onde os sistemas aberto e fechado da mídia se entrelaçam. A televisão, ao prometer diálogo, não abandonou o controle sobre o discurso: simulou participação enquanto mantinha a narrativa sob sua tutela. O público tornou-se um colaborador simbólico, alguém que “envia vídeos”, “opina” ou “interage”, mas raramente interfere de fato.
Essa interatividade performática produziu um fenômeno de exaustão: a sensação de estar dentro da conversa, mas sem voz verdadeira. É nesse contexto que o sucesso de Burnier adquire sentido. Ao contrário da retórica participativa, sua apresentação retoma a autoridade serena do narrador confiável, não por imposição, mas por ausência de excesso. Ele não promete o diálogo, entrega o fato. E o público, cansado do simulacro de participação, parece recompensar a honestidade dessa postura.
Não é apenas uma questão estética, mas quase fisiológica. Faria, ecoando McLuhan, recorda que todo meio é uma extensão do homem. A interatividade estende nossos dedos, mas encurta nossa escuta. Vivemos tocando, clicando, arrastando, raramente permanecemos. O factual, nesse sentido, é o último abrigo da permanência: o lugar onde a notícia ainda pede um instante de atenção plena.
Enquanto o Jornal Nacional se emociona, o SP2 informa. Enquanto o Fantástico convida o público a ser coautor, Burnier o convida a pensar. Essa distinção não é pequena: ela revela uma reconciliação entre o jornalismo e o real.
Há algo de irônico nisso tudo. Durante duas décadas, a televisão acreditou que precisava parecer mais humana para não perder espaço para a internet. Abriu janelas, multiplicou quadros, ofereceu opinião, emoção e conversa. Mas, ao tentar se humanizar, tornou-se ruidosa.
E agora, quando o excesso de vozes já não comunica, o público volta-se justamente para o telejornal que fala menos, mas diz mais. Talvez este seja o ponto de virada do telejornalismo brasileiro. O SP2 não é apenas um sucesso de audiência: é um sintoma de saturação da midiosfera. O público, esgotado de simular participação, busca reconexão com o real. E essa reconexão se dá, paradoxalmente, pelo retorno à forma mais elementar da comunicação televisiva: o relato.
O gesto de Burnier, ao encerrar o noticiário com sobriedade, ecoa algo que Marshall McLuhan escreveu em 1964: “O meio é a mensagem.” O que a televisão transmite agora não é apenas o conteúdo, mas um estado de espírito coletivo, a vontade de se desintoxicar da mediação.
E é curioso perceber que o veículo mais antigo da comunicação eletrônica talvez esteja reencontrando o caminho para o futuro ao redescobrir o valor do passado: a confiança no fato, o prazer da clareza, o direito ao silêncio depois da notícia.
Referências
FARIA, Watson Odilon Pereira de. Interatividade na TV Digital: um estudo a partir da teoria do meio sobre impactos comunicacionais no telespectador. Brasília: Universidade Católica de Brasília, 2016.
KIELING, Alexandre Schirmer. Televisão: a presença do telespectador na configuração discursiva da interatividade nos programas de informação – a experiência do Fantástico. São Leopoldo: Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2009.
