A história da Coreia é marcada por contrastes que coexistem como Un e Yang, a força expansiva e
guerreira de Goryeo e a introspecção moral e disciplinada de Joseon. Essas duas dinastias, que se sucederam ao longo de quase um milênio, moldaram a estrutura política, social e espiritual da península, criando as bases do que hoje reconhecemos como a identidade coreana. Entender suas diferenças é compreender a alma do povo coreano e, de certo modo, compreender também a essência filosófica que molda o taekwondo.
O Império da Cultura: A Era Goryeo
Fundada por Wang Geon (Rei Taejo) em 918, a Dinastia Goryeo foi um império de caráter autônomo e ambicioso. Considerava-se herdeira direta do antigo Goguryeo e estabeleceu sua capital em Kaegyeong, atual Kaesong. A corte goryeana projetava sobre si uma visão imperial e estruturou um Estado sofisticado, inspirado no modelo administrativo chinês, mas com alma própria.
Foi uma era de abertura e pluralidade. O budismo floresceu como religião de Estado e se tornou o eixo espiritual da cultura. Sob seu patrocínio, foi criada a Tripitaka Koreana, uma das mais completas coleções de escrituras budistas do mundo, entalhada em mais de 80 mil blocos de madeira. O comércio se expandiu por mar e terra, conectando a Coreia com o Japão, a China, os povos da Manchúria e até com o mundo islâmico. O espírito goryeano era cosmopolita, curioso e profundamente artístico.
Mas a liberdade trouxe também fragilidade. A corte mergulhou em disputas entre aristocratas civis e militares, e o prestígio do budismo acabou corrompido pelo acúmulo de poder e privilégios do clero. Quando a fé se tornou instrumento político, Goryeo perdeu sua pureza moral e deu espaço ao nascimento de uma nova era.
O Reino da Ordem: A Era Joseon
Em 1392, o general Yi Seong-gye derrubou o trono de Goryeo e fundou a Dinastia Joseon. Sua missão não era expandir fronteiras, mas reconstruir o caráter da nação. Substituiu o budismo pelo neoconfucionismo, não como simples ideologia, mas como fundamento ético e pedagógico da sociedade.
Joseon redefiniu o modo de pensar e viver. A moral confucionista exaltava a modéstia, a obediência e a harmonia social. A estrutura familiar se tornou patriarcal, as hierarquias sociais rígidas, e o Estado se organizou em torno da meritocracia dos eruditos. As mulheres, antes com certa autonomia, foram confinadas ao espaço doméstico. Em contrapartida, o reino floresceu em ciência, arte e educação. O rei Sejong, o Grande, criou o Hangul, o alfabeto coreano, libertando o povo do domínio da escrita chinesa e oferecendo-lhe um sistema fonético simples, lógico e profundamente nacional.
Joseon foi austero, mas também visionário. Criou um modelo de sociedade estável, que sobreviveu por mais de 500 anos. E, embora tenha caído sob pressões externas no início do século XX, sua herança intelectual e ética ainda pulsa no coração da Coreia moderna.
O Reflexo no Presente
Quando olhamos para a Coreia de hoje, vemos um país que carrega em si as duas almas de sua história. O impulso criativo e artístico de Goryeo sobrevive na cultura pop, na moda, no design e na tecnologia. Já o espírito disciplinado e racional de Joseon se manifesta na ética do trabalho, no respeito hierárquico e na busca constante pela excelência. O coreano moderno é, ao mesmo tempo, herdeiro do monge e do erudito, do guerreiro e do cientista. Vive em equilíbrio entre a emoção e a lógica, o instinto e a razão, o Un e o Yang.
O Taekwondo e a Herança das Dinastias
O taekwondo, tal como o conhecemos hoje, não é o eco de um mito milenar, mas o produto das transições culturais e filosóficas que moldaram a Coreia. Ele nasce da alternância entre rupturas e renascimentos.
Goryeo realizou feitos grandiosos, mas em algum momento perdeu o contato com as aspirações mais profundas do povo. Joseon construiu uma civilização admirável, seu sistema de escrita ainda é uma das criações mais geniais da história humana, mas terminou prisioneira da própria rigidez, derrubada por forças externas. Nenhum dos dois sistemas falhou apenas por fraqueza; falharam também por excesso de convicção, por apego ao poder e por ambição travestida de moralidade.
O taekwondo herdou esse paradoxo. É uma arte que reflete tanto a pureza da busca quanto o risco da soberba. Assim como as dinastias, ele carrega a dualidade entre a virtude que constrói e a ganância que corrompe. O mesmo espírito que leva um povo a criar algo sublime pode, se mal orientado, levá-lo a dominar, controlar e institucionalizar demais o que nasceu como caminho de liberdade.
Essa é, portanto, a verdadeira essência do taekwondo. Não o mito de uma antiguidade absoluta, mas o reflexo de uma nação que aprende, cai, reflete e se levanta, nem sempre melhor, mas sempre em movimento. É uma arte que, mesmo entre contradições, continua sendo espelho da alma coreana, um povo capaz de transformar derrota em filosofia, poder em disciplina e imperfeição em beleza.
Goryeo e Joseon são mais que períodos históricos. São dois modos de existir. Goryeo representa o coração criador e emotivo; Joseon, a mente disciplinada e ética. A modernidade coreana, e o taekwondo dentro dela, é a tentativa permanente de reconciliar esses dois princípios. Quando o artista e o estudioso, o guerreiro e o sábio se unem, nasce o equilíbrio.
É nessa união entre o Un e o Yang que a Coreia reencontra seu verdadeiro centro. E é nesse mesmo ponto de harmonia que o taekwondo transcende o esporte e volta a ser o que sempre foi em sua essência: um caminho de autoconhecimento e transformação.
