Há entrevistas que começam antes do “gravando”. Há instituições que falam antes da primeira resposta. E há lugares onde basta sentar para entender o tamanho da responsabilidade. A Defensoria Pública é assim: um órgão que não nasceu grande, não começou perfeito, não teve berço esplêndido — mas que carrega, talvez, a missão mais nobre do sistema de justiça brasileiro.
Quando ligo o gravador e anuncio mais um episódio do Café com o Careca, Dr. Ronaldo Francisco, Defensor Público-Geral do Estado, sorri com a serenidade de quem conhece bem o trajeto que percorreu. Não o institucional, mas o humano. O rosto não é o de um gestor distante, mas o de alguém que aprendeu cedo que justiça começa por necessidades simples: sobreviver, comer, trabalhar, entender, ser visto.
Ali fica evidente que a Defensoria Pública não é um cargo; é uma experiência de vida colocada a serviço da vulnerabilidade.
Santa Catarina, por ironia histórica, foi dos últimos estados a implementar formalmente a instituição. Em 2013, quando Dr. Ronaldo tomou posse, os primeiros defensores tiveram que comprar móveis do próprio bolso. As salas eram improvisadas, os equipamentos eram escassos, e a ideia de uma Defensoria moderna parecia tão distante quanto uma promessa de campanha esquecida. “Era tudo muito frágil”, ele recorda. Não há dor na fala — há registro. Uma lembrança viva de quem viu a Defensoria nascer na raça.
Hoje o cenário é outro. Não perfeito, não completo, mas outro. Uma Defensoria com sedes estruturadas, equipes consolidadas, proximidade com Executivo, Judiciário e Ministério Público. Uma instituição que começa a falar de inteligência artificial, planejamento estratégico, expansão territorial e caminhos reais para chegar onde a Constituição sempre disse que ela deveria estar: ao lado de quem mais precisa.
É curioso: quando se fala em justiça, imagina-se tribunais, juízes, sentenças. Mas a porta de entrada do povo é a Defensoria Pública. É ali que a vulnerabilidade vira narrativa, que a narrativa vira direito, e que o direito encontra quem o defenda.
A conversa naturalmente chega ao ponto mais delicado: o alcance da instituição. O mapa do Estado tem 112 comarcas; a Defensoria está em apenas 26. Ainda pouco em extensão, gigante em impacto. “Atendemos mais da metade da população catarinense”, ele diz. Mas o tom não é resignado; é estratégico. Porque o que antes era improviso hoje é planejamento.
Dr. Ronaldo descreve um movimento que chama de “fechar o ciclo”: organização financeira, saneamento administrativo, elaboração do orçamento, plano de expansão, cronograma de crescimento e metas claras. É raro ver uma instituição tão jovem com uma autoconsciência tão madura. “A Defensoria hoje sabe o que é, o que precisa e para onde vai”, ele afirma. E a frase não chega como marketing — chega como constatação.
A posse recente de 23 novos defensores simboliza isso. Ele fala do momento com orgulho. No semestre seguinte, virão mais 27. A Defensoria, enfim, caminha no ritmo que sempre mereceu.
Mas talvez o que move o Defensor Público-Geral mais profundamente não seja o crescimento institucional. É a memória do próprio caminho. Ele menciona, quase de passagem, a juventude difícil, o trabalho como mecânico, as lutas financeiras, a percepção precoce do que significa viver na borda do sistema. Talvez por isso sua fala sobre a missão da Defensoria seja tão diferente da fala de quem administra qualquer outro órgão: há ali uma intimidade com a dor que ele ajuda a enfrentar.
Isso fica ainda mais claro quando o tema é migração. Santa Catarina é um estado que recebe. Gente do país inteiro, gente do mundo inteiro. Indústria no Oeste, turismo no litoral, oportunidades em polos urbanos — e, junto disso, colisões de cultura, carências, urgências. Ronaldo fala na possibilidade de criar a Defensoria Pública do Migrante, um núcleo especializado para acolher quem chega sem documentos, sem idioma, sem teto, sem referências.
Quando ele descreve a cena de uma família que chega sem conseguir matricular os filhos, sem acesso ao sistema de saúde, sem sequer saber onde pedir ajuda, fica evidente o papel da Defensoria: ser o porto seguro anterior ao direito. Antes da lei, a humanidade.
É nesse clima que chegamos ao tema que atravessa o anuário: tecnologia. A Tônia — a assistente virtual em homenagem a Antonieta de Barros — simboliza um novo tempo, mas Dr. Ronaldo não se deslumbra. Ele separa as etapas do atendimento para explicar onde a IA entra e, principalmente, onde ela não entra. Acolhimento é humano. Oitiva é humana. Análise sensível é humana. Construção jurídica é humana com auxílio de IA. Comunicação processual pode ser híbrida. Mas o essencial permanece o mesmo: a Defensoria é feita de pessoas atendendo pessoas.
“Inteligência artificial é ferramenta. Sensibilidade é identidade”, ele diz. Talvez seja a frase que melhor explica o equilíbrio que Santa Catarina tenta construir.
No bloco final do programa, a parte leve revela quem é o homem por trás do Defensor Público-Geral: cozinheiro dedicado à família, risoteiro declarado, flamenguista, avaiano em Santa Catarina, leitor de teoria jurídica. Quando pergunto que mudança faria no país com um único gesto, ele responde com uma simplicidade que soa revolucionária:
“Um defensor público em cada unidade jurisdicional do Brasil.”
É uma utopia possível — e talvez uma das poucas que alterariam o país em uma década.
Antes de desligar o gravador, pergunto sobre legado. Ele não fala de si. Fala de planejamento, de continuidade, de mapa de expansão, de audiências públicas, de conferências regionais, de Defensoria como política de Estado. Fala de deixar tudo pronto para quem vier depois. “A Defensoria vai ficar”, ele diz, com a suavidade de quem sabe que instituições sólidas sobrevivem a pessoas.
Saio do encontro com a mesma sensação que tive na entrevista anterior: a de que algumas engrenagens do Estado só existem porque alguém decidiu ouvi-las. A Defensoria Pública, vista por dentro, não é apenas uma instituição. É o reflexo de um país que tenta, teimosamente, fazer justiça com humanidade.
E talvez, entre todas as vozes da justiça, seja justamente a da Defensoria que melhor nos diz quem realmente somos.
